Folia de Reis no interior paulista
Folia de Reis
As Folias de Reis manifestam a religiosidade e a criatividade dos indivíduos que nela se encontram para cultuar a vida e o divino, reconhecendo ofertas compartilhadas e graças alcançadas pela intervenção dos Santos Reis. Em meio às dificuldades e alegrias vivenciadas ou herdadas no passado e presente, esses indivíduos, em comunidade, vem compondo a história da celebração com suas memórias, versos, ritmos, cores, personagens, objetos e ações diversas.
No Brasil as Folias de Reis também podem ser identificadas como Reis, Reisados, Ternos de Reis, entre outras nomenclaturas que denotam suas especificidades (locais, regionais) e universalidades culturais.O ponto comum identificado na literatura acerca da temática, assim como pelos praticantes da celebração estudada, porém, traduz-se na sua fundamentação religiosa, pautada no episódio sobre a Natalidade de Jesus. Esta narrativa bíblica, que se encontra no Evangelho de Mateus (Fonte: BÍBLIA DE JERUSALÉM. São Paulo: Paulus, 2019, p. 1703), localiza os Magos (posteriormente conhecidos como Três Reis Magos, Santos Reis etc.) como os primeiros a visitaram o recém-nascido, adorando-o e reconhecendo a sua divindade.
Assim, nos giros/jornadas, momento ritualístico onde se encena tal história, seus praticantes se responsabilizam não só por semearem os significados do festejo entre as casas e locais por eles visitados, mas por arrecadarem prendas (dinheiro, alimentos e/ou bebidas, ofertadas aos Santos por outros devotos) posteriormente convertidas em uma grande confraternização final (Festas de Chegada ou de Encontro de Bandeiras), geralmente feita entre os dias 25 de dezembro (Natal) e 6 de janeiro (dia de Reis).
Sobre o surgimento da bandeira e dos grupos que a praticam, por sua vez, costuma-se explicá-los a partir do pedido e pagamento de um voto com os Santos Reis. Nesse aspecto, um (a) devoto (a), também conhecido (a) no interior paulista como festeiro (a), cria uma bandeira e se responsabiliza por fazer a festa conforme sua promessa. Para isso, conta com a colaboração de outros (as) devotos (as) que o ajudam a cumprir a chamada missão, responsabilizando-se, parte deles, pela peregrinação que encena a supracitada narrativa bíblica. Já a outra parte, responsabiliza-se por realizar a busca das prendas ofertadas (atividade realizada pelos catadores de prenda), assim como para cozinhar os alimentos (atividade realizada pelos mestres de cozinha, cozinheiros/as), decorar o espaço festivo (atividade realizada pelos decoradoras e rezadoras) etc.
O grupo que peregrina é particularmente formado por: foliões guiados pela bandeira e por um mestre/embaixador que lidera músicos (contramestre, tala, contratala, contrato, tipe, contratipe e gritinho/grito) na cantoria que explica os significados, personagens, objetos e memórias da festa; palhaços/bastiões vestidos com fardas coloridas, máscaras e espadas (personagens que representam os soldados arrependidos de Herodes); e bandeireiro (a) responsável por carregar a bandeira, assim como para entregá-la para os/as devotos/as que a recebem. Ao percorrerem ruas e visitarem casas, comércios, igrejas, câmaras municipais, praças etc., este grupo passa então a ser identificado pela bandeira, objeto simbólico que materializa a presença dos Santos Reis na celebração, bem como a devoção (individual e coletiva) daqueles que se reúnem para fazê-la. Nesse sentido, também são chamados de Bandeira, Companhia ou Batalhão de Reis.
Sobre o surgimento da devoção nos Santos Reis e celebração das Folias de Reis no Brasil, o referencial bibliográfico o menciona junto à chegada de europeus no contexto da colonização da América portuguesa, a partir do século XVI. E já no interior do estado de São Paulo (ver cartografia cultural – Figura 1), mais precisamente na mesorregião de Assis (ver cartografia cultural – Figura 2), a criação do festejo foi identificada nos fins do século XIX e início do século XX, momento em que os devotos/foliões rememoram a chegada dos seus familiares ao local (sobretudo, migrantes mineiros), associando a partir desse passado pessoal e pela força da manifestação cultural nos municípios e no presente, sua criação e manutenção há tempos.
Desse modo, a percepção dos detentores sobre a devoção e festa na longa duração (seja da sua invenção associada ao caráter religioso; seja da sua criação por um antigo devoto, em um remoto bairro rural do município onde ela ainda é celebrada), leva-os a identificá-la como uma tradição a qual são pertencentes, autorizando-os na condução e responsabilidade de preservá-la.Uma missão que se revela em novas ações, como no caso da realização da festa fora do seu calendário habitual (Ex.: em Ourinhos/SP ela é realizada entre os meses de maio e julho) ou da criação de eventos (Ex.: em Palmital/SP existe leilão de gado, programa de rádio, missas e terços de Santos Reis) e entidades (Ex.: em Florínea/SP e Palmital/SP existem Associações festivas), que ajudam no seu financiamento e divulgação. E o fato de pesquisas como a nossa estarem dialogando com esse público festivo, vivenciando suas celebrações e conhecendo melhor suas histórias e características, é entendido como motivo de valorização e prestígio da sua tradição. Muitos sinalizaram ao longo dos estudos desenvolvidos no interior paulista, por exemplo, que este trabalho acadêmico poderia levá-los a ter mais reconhecimento em outros espaços e localidades, e isso seria importante pois a festa, muitos disseram: “a festa não pode morrer”.
Textos em destaque
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Tese (Doutorado em História), UNESP/Assis, 2023
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Dissertação (Mestrado em História), UNESP/Assis, 2016
Meu encontro
Rafaela Sales Goulart
Desde a infância observava Folias de Reis na minha cidade natal, Tarumã (SP), mas fui compreender a importância dessa manifestação presente no interior paulista, quando passei a estudá-la e a vivenciá-la a partir de 2012. Assim, o encontro com meu objeto de pesquisa, ou melhor, com os agentes que o constituem, garantiu-me um olhar sensível sobre suas especificidades e importância na história social. Isso me afetou. Passei a refletir sobre o papel da religiosidade, bem como das ações criativas que alimentam a memória e o patrimônio cultural brasileiro.
Vídeos
Saudação ao Presépio da Bandeira do Bairro do Ribeirão Grande – Ourinhos (SP)
Ao longo dos giros/jornadas (também chamados de romaria, em Ourinhos/SP), ao depararem-se com um Presépio, os grupos precisam saudá-lo, cantando versos que remetem aos fundamentos religiosos da celebração. No caso do vídeo divulgado, a Saudação ao Presépio (também chamado de Presépio ou Declamado) já é realizada na ocasião de saída Bandeira do Bairro do Ribeirão Grande – Ourinhos (SP), realizada em jantar que inaugura a festividade no local. Nas imagens também é possível visualizar a performance dos palhaços diante do Presépio. Como eles representam os soldados arrependidos de Herodes, precisam ajoelhar-se diante da imagem de Jesus, José e Maria (presentes no Presépio), retirando suas máscaras em ato simbólico.
Performance da meia-lua e cantoria de chegada da bandeira da Companhia de Reis Anhumas de Palmital (SP)
A performance da meia-lua é muito comum nas Folias de Reis. Ela encena a ajuda que os Três Reis Magos/Santos Reis (bandeira) e os soldados arrependidos de Herodes (palhaços) teriam dado à Jesus, José e Maria, na sua viagem de fuga para o Egito. Assim, trata-se de uma performance criada e reinventada a partir da devoção nos Santos Reis e da tradição oral que compõe tal celebração. Ademais, o vídeo também demonstra uma bela canção versada por jovens mestres e foliões/foliãs da Companhia de Reis Anhumas de Palmital (SP), em ocasião de chegada da bandeira em um almoço oferecido por família devota.
Mestre Paulão e a Companhia de Reis Anhumas de Palmital (SP) cantam a saída da bandeira
(Atores sociais em seus endereços)
Outros Vídeos
Aqui será possível visualizar mais vídeos e áudios sobre as Folias de Reis presentes em Ourinhos (SP) e Palmital (SP). Os documentos foram produzidos com a finalidade de registrar como os detentores a manifestam e a vivenciam durante o seu calendário cultural. Destaca-se no material, os personagens, elementos e as narrativas do festejo.
No vídeo é possível visualizar a interlocução entre o personagem palhaço, a devota proprietária da casa visitada e o mestre da Bandeira. O palhaço, também conhecido como bastião, torna-se o responsável pelo pedido das ofertas e por repassar o que foi arrecadado para o mestre, o qual deve improvisar sua cantoria em cima do que lhe foi informado. Nesse sentido, há várias rodadas de canto, as quais só se sessam quando o palhaço informa que não há mais arrecadação e, assim, o mestre pode entoar canto de despedida.
Nesse áudio é possível acompanhar toda a narração da celebração do encontro das bandeiras e Companhias na Festa de Santos Reis de Palmital (SP). Ela foi realizada por Tê Biondi, mestre de cerimônias (função notada especificamente em Palmital) da celebração.
Imagens de
As imagens desta seção retratam aspectos gerais das Folias de Reis produzidas pelas: Companhias de Reis Flor do Vale de Florínea (Florínea-SP), Bandeira de Reis do Bairro do Ribeirão Grande (Ourinhos-SP), Companhia de Reis Água das Anhumas (Palmital-SP), Companhia de Reis Família Faceiros e Faceiros Jr. (Palmital-SP) e Companhia de Reis Três Ilhas (Palmital-SP). Através da experiência de pesquisa com esses grupos, sobretudo, a partir de 2019, foi possível registrar ainda outras manifestações da celebração em municípios da mesorregião de Assis (SP). Desse modo, as fotografias aqui disponibilizadas surgiram dos trabalhos de campo da pesquisadora, principalmente quando se constatou que grande parte dos foliões pertencentes à Ourinhos (SP) e Palmital (SP), protagonizavam também as cantorias realizadas nos giros/jornadas dos grupos existentes em Salto Grande (SP), São Pedro do Turvo e Ribeirão do Sul (SP). Esse fato pode sinalizar certo enfraquecimento das festividades em determinados municípios paulistas, ao passo em que demonstra algumas ações dos próprios detentores das Folias de Reis na reorganização local de suas práticas culturais.
Acervo de pesquisa da observadora Rafaela Goulart
Cartografia das Folias Reis
O mapa de identificação de Folias de Reis em municípios do Estado de São Paulo foi elaborado através do software QGIS 3.24 1-Tisler e a partir dos resultados obtidos em Revisão Sistemática de Literatura (RSL), realizada no artigo “Um mapa das Folias de Reis do Estado de São Paulo: notas preliminares sobre o processo de reconhecimento de um patrimônio cultural imaterial do Brasil”. Nessa pesquisa realizada em 2022, cujo a base de dados foi o Catálogo de Teses e Dissertações da CAPES, filtrou-se 12 teses e dissertações datadas entre 1999 e 2021 e que se referiam especificamente a Folias de Reis paulistas. No Brasil, no entanto, verificou-se 153 trabalhos acadêmicos sobre a celebração a partir de 1987.
As perguntas centrais da RSL foram: quantos estudos acadêmicos investigaram as Folias de Reis no Estado de São Paulo? Quando, onde e como eles abordaram a temática? E como as reconheceram e as caracterizaram nos locais de sua identificação? Já a ideia de construção do estudo e do mapa, por sua vez, surgiu da escassez de informações que até então se tinha a esse respeito no estado de São Paulo; e particularmente no que diz respeito à identificação/divulgação da manifestação na mesorregião de Assis (SP), local de pesquisa da autora. Ademais, seus resultados podem contribuir ao reconhecimento das Folias de Reis do Estado de São Paulo, processo que tramita no IPHAN desde 2020.
Mapa de identificação de Folias de Reis em municípios do Estado de São Paulo e Mapa de localização de Folias de Reis manifestadas em municípios da mesorregião de Assis (SP)
Fonte: Este mapeamento é resultante do artigo "Um mapa das Folias de Reis no estado de Sâo Paulo: notas preliminares sobre o processo de reconhecimento de um patrimônio cultural imaterial do Brasil" (2024) de autoria de Rafaela Goulart e Fabiana Cunha, publicado na Revista Fênix.
https://www.revistafenix.pro.br/revistafenix/article/view/1304
Fonte: Foi elaborado durante a pesquisa de doutorado da autora, cujo método principal foi a história oral. Tal mapeamento foi possível sobretudo através de informações obtidas em entrevistas realizadas com os detentores do bem cultural e mediante participação nas festas do local, entre os anos de 2018 e 2022.
Calendário
Dezembro
Natal e início das Folias de Reis
Início do giro/jornada das Companhias
Início do giro/jornada das Companhias que costumam acontecer até a primeira semana de janeiro em Florínea e Palmital, duas das cidades onde foi feito trabalho de campo.Florínea (SP)
25 de dezembro: Natal e início da Folia de Reis em Florínea
25/12 (Natal) – Início da Folia de Reis em Florínea: 12:00 a 17:00 – Encontro das Companhias (Bandeiras 1 e 2) e “saída das bandeiras” da casa do(a) festeiro(a) para o giro/jornada; 26/12 a 04/01 – 08:00 a 23:00 – Giro/jornada das Companhias pela região de Florínea; 05/01 e 06/01 – qualquer horário do dia ou da noite – Trabalho voluntário para o preparo da comida e do lugar da festa (Parque de Tradições de Florínea - SP); 06/01 – Encerramento: Festa de Encontro das Bandeiras no Parque de Tradições de Florínea – SP (Localização pelo Google Maps: https://goo.gl/maps/xG2ksrwUhvSZF67P8 . Acesso: 26 jul. 2023): A partir de 08:00 – Café da manhã; 09:00 – Missa na Gruta/Presépio; 10:00 às 13:30 – Almoço; 12:00 às 13:30 – Encontro dos foliões nos pontos de pouso e saída das Companhias rumo ao Parque de Tradições; 14:00 – Encontro das bandeiras; 16:00 às 17:00 – Reza do terço na Gruta/Presépio; 17:00 às 18:00 – Coroação de novos festeiros (as); A partir de 18:00 – Jantar.Palmital (SP)
Data a combinar com os párocos locais – missa de envio das Bandeiras de Igreja de Palmital; 25/12 (Natal) – Início da Folia de Reis em Palmital
A partir das 12:00 – Encontro das Companhias e de suas respectivas bandeiras em casas distintas (normalmente de casas de devotos onde as bandeiras costumam pousar ao longo do ano, ou mesmo das casas daqueles que pagam sua promessa recebendo os grupos para tal) e início do giro/jornada; 26/12 a 31/12 e de 02/01 a 06 ou 07/01 – 08:00 a 23:00 (aprox.) – Giro/jornada das Companhias por Palmital e região; De 06/01 ao segundo sábado após essa data – qualquer horário do dia ou da noite – Trabalho voluntário para o preparo da comida e do lugar da festa (Estância de Santos Reis de Palmital - SP); Segundo sábado após o dia 06/01 – Encerramento: Festa de Encontro das Bandeiras na Estância de Santos Reis de Palmital – SP (Localização pelo Google Maps: https://goo.gl/maps/U8mHWAfGvH91LfZ18. Acesso: 26 jul. 2023); A partir de 09:00 – Missa; 10:00 às 14:00 (aprox.) – Apresentações culturais e almoço; 14:00 a 16:00 – Encontro das bandeiras; 16:00 a 19:00 – Jantar. Geralmente no final do mês de fevereiro – 12 às 18 horas – Leilão de Gado da Festa de Santos Reis de Palmital.Ourinhos (SP)
Sábado posterior ao Dia das Mães, no mês de maio – início da Folia de Reis em Ourinhos
A partir das 18:00 – Jantar de saída da bandeira do Centro Comunitário do Bairro de Ribeirão Grande para o giro/jornada; Sábados e eventuais domingos dos meses de maio, junho e julho – 09:00 a 17:00 (aprox.) – Giro/jornada das Companhias por Ourinhos e região; Penúltimo sábado do mês de julho – a partir das 17:00 – Entrega da bandeira no Centro Comunitário do Bairro de Ribeirão Grande; Último sábado do mês de julho – Encerramento: Festa de Encontro das Bandeiras no Centro Comunitário do Bairro de Ribeirão Grande – SP; A partir de 09:00 – Missa; 10:00 às 15:00 (aprox.) – Apresentações de Companhias no Presépio e Almoço; 15:00 às 17:00 – Saída de procissão da Capela do Bairro de Ribeirão Grande ao Centro Comunitário do Bairro de Ribeirão Grande e cerimonial de coroação dos novos festeiros (as) do ano; A partir das 18:00 – Jantar e baile.Sem data fixa
Referências
Entre as variadas referências sobre Folias de Reis no Brasil, selecionou-se aqui a produção intelectual da observadora, bem como teses e dissertações que se delimitaram a estudar a celebração no interior paulista. Ademais, foram disponibilizadas bibliografias que abrangem pesquisas sobre o bem cultural em outros territórios e estados, além de referências que abordam aspectos específicos da devoção nos Santos Reis fora da realidade brasileira.
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GOULART, Rafaela Sales. Tradição como missão: história da preservação da memória e identidade
das Folias de Reis em Ourinhos e Palmital (SP). 2023. 365f. Tese – (Doutorado em
História) – Faculdade de Ciências e Letras, Universidade Estadual Paulista - Júlio de
Mesquita Filho, Assis, 2023.
https://repositorio.unesp.br/handle/11449/239098
GOULART, Rafaela; CUNHA, Fernanda. Um mapa das Folias de Reis do Estado de São Paulo: notas preliminares sobre o processo de reconhecimento de um patrimônio cultural imaterial do Brasil. Fênix - Revista De História E Estudos Culturais, 21(1), 2024.
https://www.revistafenix.pro.br/revistafenix/article/view/1304
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