A "Pequena África" no Rio de Janeiro
A construção de um território negro
O território da Pequena África do Rio de Janeiro engloba uma vasta região que inclui os bairros da Saúde, Gamboa, Santo Cristo, Praça Onze e Centro. No entanto, é mais fecundo pensá-lo não a partir de definições fixas ou apriorísticas, mas sim pela fluidez das situações e dos indivíduos e grupos que o reivindicam. Trata-se de uma localidade afirmada como um território negro por inúmeras lideranças e agentes culturais que ali trazem à tona memórias de importantes personalidades negras de tempos passados, buscando uma continuidade entre passado e presente.
Um dos locais mais emblemáticos desse território é a Pedra do Sal, reivindicada desde a década de 1980 pelo movimento negro e tombada em 1984 pelo Inepac. Ela evoca a presença de importantes personalidades afro-baiano-cariocas do período pós abolição e primeiras décadas do século XX, como Tia Ciata, Pixinguinha, Donga, João da Baiana, e sua participação fundamental na criação do samba, nas religiões de matriz africana, na capoeira, no trabalho na estiva, dentre outras atividades. Esse modo de vida é hoje performatizado em diversos momentos por indivíduos e grupos, como nas rodas de samba que se realizam semanalmente no sopé da Pedra, nas ações dos remanescentes do Quilombo da Pedra do Sal e no centro cultural de Gracy Mary Moreira, bisneta de Tia Ciata.
O Cemitério dos Pretos Novos, encontrado em 1996, e o Cais do Valongo, escavado em 2011 e reconhecido pela Unesco em 2017 como o local por onde desembarcaram mais de 1 milhão de cativos africanos nas primeiras décadas do século XIX, evidenciam o que talvez tenha sido o maior complexo escravagista da América Latina
Com a difusão internacional dos debates sobre escravização e a criação de museus e memoriais voltados para a reflexão sobre essa temática, sobretudo a partir dos anos 2000, dois sítios arqueológicos ganharam importância no imaginário em torno da Pequena África: o Cemitério dos Pretos Novos, encontrado em 1996, onde teriam sido enterrados em precárias condições os corpos de cerca de 40 mil cativos africanos recém desembarcados, entre fins do século XVIII e início do XIX; e o Cais do Valongo, escavado em 2011 e reconhecido pela Unesco em 2017 como o local por onde desembarcaram mais de 1 milhão de cativos africanos nas primeiras décadas do século XIX. Juntos, eles evidenciam o que talvez tenha sido o maior complexo escravagista da América Latina. Os dois sítios simbolizam tanto o preconceito racial que está na base da sociedade brasileira quanto a ancestralidade negra, suas culturas, religiões e formas de resistência. Em torno deles são realizadas diversas manifestações religiosas e culturais afrodescendentes.
Texto em destaque
Meu encontro
Simone Vassallo
Meu primeiro contato com a região portuária foi em 2010, ainda por conta da pesquisa sobre capoeira que eu realizava então. Conversando com um antigo morador, fui informada que bem do lado de onde estávamos havia um cemitério de escravos. Fiquei tão intrigada que agendei uma visita ao local. Foi assim que conheci o Instituto dos Pretos Novos e as pessoas que o integram, que se dedicam a cuidar do sítio arqueológico Cemitério dos Pretos Novos. Nesse mesmo momento, começava a ser implementado pela prefeitura, na região portuária, o Projeto Porto Maravilha de revitalização urbana, trazendo inúmeras modificações e tensões para os bairros abrangidos. E um dos efeitos não planejados pelos gestores do projeto foi uma intensificação das reivindicações das memórias africanas e afrodescendentes da localidade por parte de inúmeros indivíduos e grupos. Em meio a esse processo, o Cais do Valongo foi desenterrado em 2011 e rapidamente se tornou candidato a patrimônio da humanidade pela Unesco, simbolizando o local por onde mais africanos escravizados desembarcaram em todo o mundo. Foi assim que comecei a acompanhar eventos, festas e reuniões, e a conhecer inúmeros moradores e lideranças locais. Tudo isso para um pesquisador é um prato tão cheio que comecei a analisar todas essas dinâmicas que se entrelaçavam e nunca mais consegui parar...
Vídeos
Ao longo da década de 2010, com o projeto de revitalização urbana e o desenterramento do Cais do Valongo que deram ampla visibilidade para a região portuária, foram produzidos diversos vídeos que narram histórias e memórias dos africanos escravizados e da população negra frequentadora da Pequena África no pós abolição. Apresentamos aqui alguns desses vídeos produzidos por lideranças locais e por pesquisadores.
Vídeo produzido pela Concessionária Porto Novo abordando um pouco da história do Cais do Valongo.
Outros Vídeos
Vídeo produzido pela Concessionária Porto Novo.
Vídeo produzido pela TV ALERJ.
Imagens de
Coletânea de imagens do acervo pessoal de Simone Vassallo, capturadas ao longo da pesquisa, entre 2010 e 2019, por ocasião dos inúmeros eventos e festividades ocorridos na Pequena África durante esse período.
Acervo pessoal de Simone Vassallo
Cartografia
Como todos os territórios, a Pequena África possui fluídas fronteiras espaciais e temporais. Para além das suas múltiplas leituras e definições, podemos dizer que há um consenso de que ela engloba parte da Cidade Nova, do Centro da Cidade e dos bairros Saúde, Gamboa e Santo Cristo, e abrange um período que vai desde fins do século XVIII até hoje. Alguns de seus principais marcos ainda visíveis são a Pedra do Sal, o Cais do Valongo e o Cemitério dos Pretos Novos.
MAPA DA "PEQUENA ÁFRICA" LOCALIZADA NO CENTRO DO RIO DE JANEIRO
Imagem reproduzida da plataforma Google Earth.
Legendas
A = Local onde estima-se ter sido o Lazareto, para onde eram levados os cativos africanos recém desembarcados que estavam doentes.
B = Sítio Arqueológico Cemitério dos Pretos Novos e Instituto dos Pretos Novos, onde se encontram as ossadas de cerca de 40 mil cativos africanos enterrados entre fins do século XVIII e início do XIX.
C = Sítio Arqueológico Cais do Valongo, por onde estima-se que desembarcaram cerca de 1 milhão de cativos africanos nas primeiras décadas do século XIX.
D = Largo dos Estivadores: local que em fins do século XVIII e início do XIX abrigou o mercado de escravos do Valongo, considerado o maior das Américas.
E = Pedra do Sal, patrimônio cultural que simboliza a intensa sociabilidade e cultura afro-brasileiras da virada do século XIX para o XX, e que hoje abriga rodas de samba e outras festividades negras.
Calendário
A Pequena África possui vários lugares abertos à visitação e eventos festivos fixos e ocasionais que celebram a herança africana de diversas maneiras.
Instituto dos Pretos Novos e Sítio Arqueológico Cemitério dos Pretos Novos
Casa da Tia Ciata
Pedra do Sal
Cais do Valongo
Largo da Prainha
Centro Cultural Pequena África
Centro Cultural José Bonifácio
Docas D. Pedro II
Referências
Graças à complexidade do seu território, a Pequena África tem despertado muito interesse de diversas áreas da academia. Selecionamos alguns dos trabalhos mais significativos para quem deseja iniciar ou se aprofundar numa pesquisa sobre o tema.
VASSALLO, Simone Pondé.
“O antropólogo como agente e o reconhecimento do Cais do Valongo pela UNESCO”
In: TAMASO, Izabela; GONÇALVES, Renata de Sá; VASSALLO, Simone Pondé (orgs.). A antropologia na esfera pública: patrimônios culturais e museus. Goiânia, Ed. Imprensa Universitária/UFG e ABA Publicações, 2019.
http://www.aba.abant.org.br/administrator/product/files/146_00159932.pdf
VASSALLO, Simone Pondé; CACERES, Luz Stella Rodriguez.
Conflitos, verdades e política no Museu da Escravidão e da Liberdade no Rio de Janeiro.
Horizontes Antropológicos, Porto Alegre, ano 25, n. 53, pg. 47-80, jan/jun 2019.
http://www.scielo.br/pdf/ha/v25n53/1806-9983-ha-25-53-47.pdf
VASSALLO, Simone Pondé.
Entre objetos da ciência e vítimas de um holocausto negro: humanização, agência e tensões classificatórias em torno das ossadas do sítio arqueológico Cemitério dos Pretos Novos.
Interseções, Rio de Janeiro, vol. 20, n. 1, p. 36-66, jun. 2018.
https://www.e-publicacoes.uerj.br/index.php/intersecoes/article/viewFile/35858/25625
VASSALLO, Simone Pondé; BITTER, Daniel.
A múltipla Pequena África no Rio de Janeiro: perspectivas reflexas de negros e judeus.
Revista Antropolítica, n. 45. Niterói, p. 94-122, 2. Sem. 2018.
http://www.revistas.uff.br/index.php/antropolitica/article/view/663/
VASSALLO, Simone Pondé.
Interventions urbaines et processus de patrimonialisation: la construction d’un territoire noir dans la zone portuaire de Rio de Janeiro (1980-2000).
In: CAPONE, Stefania; MORAIS, Mariana Ramos de (dir.). Afro-patrimoines : culture afro-brésilienne et dynamiques patrimoniales. Les Carnets du Lahic, Paris, n. 11, 2015.
https://www.passeidireto.com/arquivo/18177119/carnet-lahic-11/1
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A utopia da Pequena África: projetos urbanísticos, patrimônios e conflitos na zona portuária carioca.
Rio de Janeiro, FGV, 2014.
https://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0104-71832017000100423
GUIMARÃES, Roberta Sampaio de.
O patrimônio cultural na gestão dos espaços do Rio de Janeiro.
ESTUDOS HISTÓRICOS , v. 29, p. 149-168, 2016.
http://bibliotecadigital.fgv.br/ojs/index.php/reh/article/view/58969
GUIMARÃES, Roberta Sampaio de.
Patrimônios e conflitos de um afoxé na reurbanização da região portuária carioca.
Mana (Rio de Janeiro. Online), v. 22, p. 311-340, 2016.
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HONORATO, Cláudio de P.
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Dissertação (Mestrado em História)–Instituto de Ciências Humanas e Filosofia, Universidade Federal Fluminense, Niterói, 2008.
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O Valongo através de um outro olhar: arqueologia da paisagem do complexo escravista do Rio de Janeiro no século XIX.
Tese apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Arqueologia da UFRJ, Rio de Janeiro, 2018.
TAVARES, Reinaldo Bernardes.
Cemitério dos Pretos Novos, Rio de Janeiro, século XIX: uma tentativa de delimitação espacial.
Dissertação (Mestrado em Arqueologia)–Museu Nacional, Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2012.
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SOARES, Carlos Eugênio Líbano.
A Pequena África: um portal do Atlântico.
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